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O ORDENAMENTO JURÍDICO

 DE STAR TREK

 

O Site da USS Venture transcreve e amplia o artigo publicado em nossa Revista TRIBUNA QUARK de AGOSTO de 2018. Este artigo tece comentários sobre o atual ordenamento jurídico de Star Trek, vislumbrando como poderiam ser as relações políticas (exopolítica) e jurídicas (exodireito) entre a humanidade e civilizações alienígenas.

 

Aproveitem este artigo!

 Almirante MDaniel Landman

 USS Venture NCC 71854


 

Na condição de estudioso das exociências sociais, busco na ficção científica embasamento filosófico para pensar sobre os limites e as possibilidades de relações políticas (exopolítica) e jurídicas (exodireito) entre a humanidade e civilizações alienígenas.

 

Diziam os antigos romanos, há dois milênios: “ubi societas, ibi ius”, “onde há sociedade, há direito”. Logo, havendo uma sociedade estelar (galáctica ou cósmica), como poderiam ser as relações políticas entre as diferentes espécies? Mais: haveria ordenamento jurídico comum, vigente para diversas raças inteligentes?

 

Em âmbito terreno, a natureza gregária do ser humano leva-o a estabelecer normas de conduta, visando ao controle social, pela prevenção e solução de conflitos de interesse, inerentes à intersubjetividade. Decorre daí que, havendo sociedade, haverá ordem jurídica.  Tal  ideia  seria  aplicável  também  à comunidade cósmica, composta por incontáveis civilizações?

 

Na falta de conhecimento seguro acerca do convívio (político e jurídico) entre as várias espécies reportadas pela ufologia mundial, é razoável recorrer à ficção científica em busca de elementos para a reflexão, o que nos leva ao espaço, a fronteira final para especularmos sobre os povos galácticos imaginados no contexto de Star Trek.

 

 

Existente desde a primeira temporada da série original,  a  Federação  Unida  de  Planetas  é uma espécie de “república federativa interestelar”, composta de governos planetários que concordaram em coexistir sob um governo central único baseado nos princípios da liberdade, da igualdade, da paz e da cooperação mútua. A iniciativa de criação da Federação partiu dos terráqueos e pode ser vista como consequência da descoberta do ser humano de que a “política galáctica” era tão complexa quanto a do planeta Terra, exigindo mecanismos legais para exercê-la de forma eficiente.

 

A Federação surgiu como um esforço organizado de diferentes planetas, com histórias, culturas e espécies distintas, para orientar a inter-relação entre os governos e as forças atuantes na galáxia, ao menos nos chamados Quadrantes Alfa e Beta, em princípio. Trata-se de uma espécie de “ONU” do espaço interestelar. Sua fundação teria ocorrido no ano de 2161 em São Francisco, nos Estados Unidos, justamente a primeira sede da ONU. Uma coalizão de planetas já havia sido formada em 2155.

 

 

Do mesmo modo, já existiam acordos de cooperação anteriores, mas isolados, assim como instrumentos legais próprios de cada planeta, e esse conjunto foi levado em consideração não apenas para embasar a fundação da Federação Unida dos Planetas, mas também para orientar os seus procedimentos e os seus princípios legais.

 

Na perspectiva histórica da tradição constitucionalista, entre esses instrumentos está a Magna Carta, documento do Planeta Terra, assinado em 1215 pelo Rei João, da Inglaterra, e visto como um primeiro passo rumo ao estabelecimento das leis da Federação. No âmbito ficcional, também foram considerados a Constituição dos Estados Unidos, os Estatutos de Alpha III, a Declaração dos Direitos dos Vulcanos, a Declaração Fundamental das Colônias Marcianas de 2103 (tida como importante passo na busca de direitos individuais interestelares) e os Atos de Cumberland (estatutos referentes aos direitos dos “dispositivos” com inteligência artificial).

 

Na data 2161.10.12, os planetas-membros teriam ratificado a Carta de Intenções da Federação Unida de Planetas e no ano seguinte teria sido aprovada a Constituição da Federação, ou os “Artigos da Federação”, estabelecendo os princípios básicos para o seu governo e conferindo direitos civis aos indivíduos.

 

O documento conta com ao menos 12 “garantias” ou direitos individuais fundamentais do cidadão. A Sétima Garantia, por exemplo, inspirada na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos, protege os cidadãos dos planetas-membros de serem impelidos a dar testemunho contra si mesmos em processos legais. Esses direitos são estendidos a todos os membros (indivíduos), independente de cor, raça, credo, sexo, forma ou origem. Os artigos, inclusive, proíbem a discriminação por castas.

 

 

A Constituição também proíbe explicitamente a interferência da Federação nos assuntos internos de estados estrangeiros, o que está em consonância com a “Primeira Diretriz” da Frota Estelar, como se verá. Todas as formas de vida senciente que estiverem a bordo de suas espaçonaves estão igualmente sujeitas aos direitos e às proteções previstas pelos Artigos da Federação. Embora por vezes se entenda que o texto da Constituição é limitado às 12 garantias, há evidências de um conteúdo maior, assemelhado ao do Código Judiciário da Federação.

 

Os artigos também estabelecem que todos os registros de julgamentos devem ser mantidos e preservados. São conhecidas ainda aplicações mais específicas do texto constitucional. Por meio dele, uma pessoa só pode ser detida por acusações de desacato ao tribunal por um período máximo de três meses em tempo de paz.

 

 

A Constituição pode sofrer emendas, mediante proposta formal aprovada por 2/3 dos membros da Federação. O planeta que desejar ingressar na Federação deve demonstrar aos demais que seu povo está pronto e deseja aderir incondicionalmente aos termos da Constituição, ainda que isso possa contrariar a própria cultura. Por outro lado, a Constituição garante que todo novo membro poderá manter suas leis e tradições, desde que não fira os preceitos da Federação. Em verdade, a Constituição protege também os direitos dos planetas-membros, garantindo até que cada planeta mantenha sua própria força espacial-militar, separada da Frota Estelar da Federação. Entretanto, a lei da Federação tem o poder, em situação de emergência, de anular o governo local e declarar regime marcial no território de qualquer de seus membros.

 

 

O governo é exercido pelo Conselho da Federação, uma espécie de parlamento, composto de representantes de cada planeta integrante, e executado pelo seu presidente, eleito pelo Conselho e que atua tanto como chefe de estado como chefe de governo. O presidente define a política externa da Federação, além de administrar o orçamento e ser o comandante supremo das forças militares. O Conselho determina as diretrizes da Federação, bem como a criação ou a revogação de leis, além de dar ao presidente o poder de declarar guerras e ratificar acordos interestelares. Ele também tem grande influência sobre as operações militares da Federação. Já serviu como órgão julgador de cortes marciais e, por vezes, emitiu ordens operacionais para a Frota Estelar.

 

O Conselho se divide em diversos Subconselhos, com jurisdição sobre áreas específicas.

Há Conselhos de Segurança, de Relações Exteriores, de Inteligência, de Ciência, de Tecnologia, de Arqueologia e o Conselho Judiciário, além de agências executivas que auxiliam na gestão da Federação. O Conselho Judiciário já foi descrito como a maior autoridade legal na Federação, mas essa função também é atribuída a uma Suprema Corte da Federação. Com efeito, há hierarquia de tribunais no organograma Judiciário da Federação, sendo que um tribunal atua como corte final de apelação para assuntos que envolvem relações interestelares, por vezes após inquéritos no Conselho de Segurança.

 

Além disso, para julgamentos individuais, há um júri de pronunciamento, composto por cidadãos da Federação, que geralmente atua em associação com uma investigação criminal, e há um júri especial, destinado a conduzir julgamentos em casos de crimes de guerra. Em relação à Suprema Corte, seus membros são indicados pelo Conselho da Federação, entre os mais experimentados na esfera legal.  Não está claro se a atuação da Suprema Corte se estende também a questões relacionadas à regulação da Frota Estelar. Sabe-se que, juntamente com as cortes civis, a Frota Estelar possui seu sistema próprio de cortes marciais. 

 

 

A regulamentação das normas no âmbito da Federação ocorre por meio do Código Uniforme de Justiça e do Código Judiciário da Federação (também chamado de Código Legal), este com regras relacionadas às questões jurídicas aplicáveis no “território” da Federação, incluindo as naves e as instalações estelares. Neste Código também está previsto, por exemplo, que um indivíduo será considerado inocente até prova em contrário e que deve ser posto em liberdade se posteriormente a sua inocência for comprovada. Questões como o direito à vida, à privacidade e a orientação sexual, direitos de personalidade assegurados nos ordenamentos jurídicos nacionais e nos tratados de Direitos Humanos, estão presentes em episódios da série, presumindo-se que devam constar também do conjunto de leis da Federação.

 

Se um membro da Federação, ou da Frota Estelar, violar uma lei em território sob outra jurisdição, deverá ser julgado de acordo com a lei vigente naquele governo, e não a da Federação, preservando-se a Primeira Diretriz da Frota Estelar. As Diretrizes da Frota Estelar, ou “Ordens Gerais”, foram criadas para instruir os membros da frota sobre como se comportar, em termos éticos e políticos, quando não há meios de se consultar a própria Federação. A Frota Estelar foi criada a partir de um documento do final da década de 2120 e início da década de 2130, no qual consta a famosa frase “audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve”.

 

 

Ou seja, a Frota Estelar é anterior à fundação da Federação, e algumas das diretrizes por ela fixadas já vinham sendo praticadas. Sob o comando do Conselho da Federação, no entanto, essas diretrizes foram ampliadas e “atualmente” seriam 32. A “Primeira Diretriz” é a principal delas. Ela proíbe os membros da Frota de interferir no desenvolvimento de uma sociedade planetária, o que está de acordo com a Constituição. Outra diretriz estabelece, como punição, a destituição de posto e a prisão de quem violar a Primeira Diretriz.

 

Outras diretrizes limitam o uso da força, estabelecem o tratamento a ser dispensado ao travar contato com espécie inteligente, fixam procedimentos para situações de emergência, disciplinam a negociação de acordos ou tratados com representantes legais de planetas, salvaguardam os membros da tripulação de ações tomadas por seus superiores, entre outras formas de atuação da Frota Estelar.

 

 

A Federação também assinou diversos tratados diplomáticos com outros governos, tanto de aliados como de inimigos, a fim de acabar ou evitar possíveis conflitos armados e estabelecer condições de cooperação entre os povos.  Entre eles, podemos citar o Tratado de Organia, o Primeiro e o Segundo Acordo de Khitomer, o Tratado de Paz Romulano, o Tratado de Algeron, o Tratado de Armens, o Tratado Federação-Cardassia, etc. Esses tratados regulam relações com mundos hostis, ao passo que dentro da Federação há mais informalidade e as garantias processuais dão lugar à confiança.

 

 

Há muitas relações possíveis entre a lei interestelar apresentada nos episódios de Star Trek e as noções contemporâneas de Direito Internacional. Além dos tratados, questões como a sucessão de Estados, relações diplomáticas, resolução de disputas interestelares, a associação em organizações interestelares, a regulação de controle e trânsito em fendas espaciais ou “buracos de minhoca”, como analogia ao Direito do Mar, a legislação ambiental, o terrorismo, a extradição, a jurisdição extraterritorial, o asilo e o “status” de refugiados, os crimes de guerra e contra a humanidade, o conceito de “jus cogens”, a justificativa da autodefesa para o uso da força e a não interferência em assuntos domésticos são temas associados ao Direito Internacional e com os quais é preciso lidar, no nível galáctico, a partir do ordenamento jurídico da Federação.

 

 

Assim, todo esse aparato legal utilizado no enredo das produções do Universo Star Trek serve tanto como metáfora da sociedade contemporânea, no mundo real, como para explorar possíveis aspectos sócio-políticos do futuro, com todas as suas consequências, nomeadamente no plano das exociências sociais. Admitindo a crescente exploração do espaço pelo ser humano, e o eventual contato com outras formas inteligentes de vida, por certo passaremos por diversas situações já antecipadas em Star Trek. Em síntese, o novo paradigma emergente para a humanidade (o paradigma alienígena, pois não estamos sós no Universo) demandará a criação de institutos jurídicos semelhantes aos prenunciados em Star Trek, ainda que pensados em perspectiva deveras antropocêntrica. Afinal, “Ubi societas, ibi ius”.

 

 

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Artigo Por:
FLORI ANTONIO TASCA

tascaadvogados@tascaadvogados.adv.br

Graduado em Filosofia pela Universidade do Sul de Santa Catarina, com Doutorado em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná. Coeditor da Revista UFO e diretor jurídico da Comissão Brasileira de Ufólogos.

Fontes:

CHAIRS, Robert; CHILTON, Bradley. Star Trek Visions of Law and Justice. Dallas: Adios Press, 2003.

 

MEMORY Alpha. Conteúdo enciclopédico sobre Star Trek. Disponível em:

http://memory-alpha.org

 

TASCA, Flori Antonio. Da exopolítica ao exodireito. Revista Exociência, ISSN 2359 5345. Atibaia: Instituto Mukharajj Brasilan, pp. 39-61.

 

USS Venture. Leis e tratados da Federação Unida dos Planetas. Disponível em:

 http://www.ussventure.eng.br

Obs.: Todas as imagens do artigo estão disponíveis publicamente na Internet
 

 

 

 

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